A lua depois do gravador

Minha foto
Nome:
Local: Rio de Janeiro, RJ, Brazil

sábado, outubro 29, 2005

Você acontece

Você está infeliz nesse papel, nessa tarefa de caçar personagens para o consumo do público, você não nasceu para isso, não nasceu para ficar atrás dos outros, não nasceu para esse trabalho braçal que não exige inteligência alguma. Você gosta de pensar, você nasceu para escrever, você precisa criar um mundo que já existe, essa história de dinheiro não a faz crescer mais, são os novos tempos. Você acaba escrevendo abobrinhas para relaxar, você não tem nada para ler, você trouxe algo para esquecer da vida, mas não dá para esquecer da vida, não essa vida, você não consegue jogar tudo para o alto, sua educação não permite, seu temperamento libriano, você não sabe dizer não, por isso se aborrece, se estressa, se violenta, depois resolve pagar para ver e acha até divertido.

segunda-feira, outubro 24, 2005

A única

Ele te ameaça e você fica enlouquecida, ele demora e você já acha que ele está com outra, sabe que ele não tem ninguém ainda, até ontem, mas hoje já o imagina beijando uma qualquer no bar e dali para um motel vagabundo, você começa a imaginar coisas e pessoas, lembra de nomes antigos e fica se consumindo em pequenos detalhes, sorrisos oferecidos sem motivo, delicadezas momentâneas sem necessidade, começa a valorizar figuras que nunca passariam pela cabeça dele menos ainda pelo corpo. É a sina da mulher ciumenta, você não pode controlá-lo, fica fuçando agendas velhas em busca de destaques, mas nada se destaca a não ser você, você não quer acreditar que é a única, assim não tem graça, assim não faz sentido, ele nunca foi a exceção nesse assunto. Você fica na janela esperando o ruído do motor do carro envolta em muitas lembranças, a bandeja com queijos e champanhe largada no chão da sala. Você volta a ser a adolescente que levantava o fone do gancho a cada cinco minutos para ver se o aparelho estava mesmo funcionando, você tem vontade de arrumar as coisas e ir embora mas espera, sempre espera, porque ele sempre volta, sozinho e meio bêbado, cheio de vontade de você.

segunda-feira, outubro 17, 2005

Caos interno

Desarrumação é a palavra-chave. Sua casa está uma bagunça, você não consegue saber por onde começar, precisa resolver tanta coisa, seu carro está batido, você só precisa consertar e depois cobrar, seu marido reclama, você só precisa estar mais disponível para amar, sua filha vive carente, você se sente uma péssima mãe, não consegue organizar os horários, não consegue ter pulso, não consegue domar o pequeno gênio leonino que bate pé. Você se sente tomada pelo caos, sem perspectivas de dinheiro, sem encaminhar os projetos que só andam na sua cabeça, que aí dentro estão em outro nível, você reza e implora mas tem vontade de chorar e se controla, a vida corre mais devagar agora.

quinta-feira, outubro 13, 2005

Bob

Ele dizia que o mais importante era o glamour; muita gente debochava, achava isso coisa de perua, de desocupado, de incompetente. Você mesma muitas vezes implicou com o lema, imagine viver como se a vida fosse permanentemente uma festa quando havia tanta conta para pagar sozinha, mas no fundo você compreendia, concordava e sutilmente seguia, afinal, dava para pagar as contas mantendo um certo estilo. De uma forma ou de outra você foi incorporando a lição, fazendo as coisas do seu jeito, mantendo-se à margem da mediocridade, tendo a alegria em cada passo silencioso e reservado. Hoje você agradece e reza por ele sem alarde. Ninguém sabe o que você aprendeu. Ninguém sabe que ele se arriscou por você. Ninguém sabe o que ficou picotado naquela mesa de bar.

domingo, outubro 09, 2005

Os dias passam

Vocês eram amigas há anos, chegaram a dividir o mesmo livro durante as aulas de biologia do terceiro ano, as duas não se impressionavam com o vestibular, enquanto a turma se estressava com as notas vocês liam a vida de christiane f., estavam na mesma página, dividiam tudo, até o cigarro que você não fumava mas acompanhava pela fumaça dentro do banheiro. Vocês eram tão amigas que uma vez a vida de vocês foi parar numa prova de português, vocês ficaram surpresas ao ver a redação entre outras duas para serem analisadas, era para escolher uma e nenhuma das duas escolheu essa, não dava para entender mesmo. Vocês usavam roupas iguais mas vocês não eram parecidas, vocês eram amigas, vocês eram irmãs. Hoje vocês se encontram pouco mas continuam as mesmas, como há vinte anos. Por isso você fica horrorizada quando vê as outras pelas ruas, como aquela que era a musa, aquela com a qual eles sonhavam casar, que parecia virgem, íntegra e diferente de todas e virou uma matrona feia, frustrada e rancorosa. Hoje são vocês que estão poderosas.

quarta-feira, outubro 05, 2005

Pompa e circunstância

Ele não podia ouvir através do vidro mas sentia na carne o som da sua gargalhada, doía. Você parecia feliz depois de tê-lo abandonado. Era uma fase de rancores e amarguras. Você também sofria, terminar um casamento nunca é bom, ainda que não haja mais nada. Era hora de começar de novo, partindo do que havia restado. Foi por causa de vocês que um novo casamento seria celebrado, então já servia para alguma coisa. Vocês conseguiram juntar duas pessoas que se amavam. Você estava certa. Não havia mais tempo para o ciúme que virara doença, quando até as horas no salão de beleza eram contadas. Ou o braço quebrado na parede, na hora em que a paixão se transformara em desespero. Quando ele olhava pelo vidro você diminuía a força da risada, um pouco para aplacar a culpa de não amá-lo mais. Você não se arrepende de ter vivido. Por isso casou de verde, por isso entrou de verde na igreja para abençoar o novo casal, chorando, sentindo-se viva.