A lua depois do gravador

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Local: Rio de Janeiro, RJ, Brazil

quarta-feira, março 30, 2005

Anos 70

De repente você pensa em nomes da sua infância, amigos dos tempos em que seus pais faziam encontro de casais, que virou desencontro de vários casais, as amigas do prédio, a que tinha todos os almanaques disney e um quarto lotado de brinquedos que parecia um sonho, a outra com um quarto de adolescente decorado como nas revistas. Vocês tinham dez anos e se sentiam a grace jones, vocês sonhavam docemente. Sua memória hoje já não é a mesma, tantas bocas beijou de tantas cores e sabores, tantas pistas pisou, tanto que deixou para lá que hoje você só quer paz. Precisa de paz para se centrar, se organizar, se descobrir, arrumar a casa para arrumar o mundo, precisa ir ao mercado, cuidar das plantas da varanda, encher de comida a geladeira, limpar o escritório que está intransitável, salvar os telefones na agenda do celular. Você não consegue separar as coisas, precisa de mais gavetas dentro de você, então inventa coisas demais, coisas que não devia, gasta tempo útil com bobagens inúteis, comprando cadernos que não usa, canetas que não utiliza, idéias que não experimenta. Fica sonhando sem fim enquanto poderia aproveitar tudo para o mundo.

quinta-feira, março 24, 2005

Coquille St. Jacques

Era como se nada mais existisse em volta, o bar estava cheio, a fofoca ia rolar solta, mas mesmo assim vocês dois se sentiam a sós na mesa, ninguém ao lado percebia, todos bêbados como sempre, preocupados com teorias idiotas. Ele chegou mais tarde, era quase fim de festa, você ficou inebriada, era como se não tivesse bebido nada, era como se nunca estivesse estado ali no meio de tanta gente vazia e sem importância, você pediu um coquille, ficou oferecendo para ele na boca, na frente de todo mundo, ele disse que queria mais, que sempre queria mais, você entendeu, a boca dele era só sua, você também queria mais do que aquilo.

sábado, março 19, 2005

A paixão é assim

Você muda o cabelo e parece uma nova mulher. Enquanto passa, sente prazer na água do chafariz que espirra na sua roupa. As crianças correm pela praça e os pombos levantam vôo mas você não sente medo. Sabe que nada vai lhe acontecer. É assim meio inatingível que você pega o metrô contra o rush, acha graça da multidão cansada. Você marcou um encontro com ele numa hora quebrada. Chega cedo porque sabe que vai esperar mesmo, então é melhor aproveitar para viver cada momento, olhar em volta, observar a cidade, participar de um dia-a-dia do qual você não faz mais parte. Ele chega e quem vê não imagina, vocês parecem dois namorados, mas já são casados há vários anos. Ele te acha diferente, estranha o cheiro do seu cabelo, é a química, você diz. É tão bom estar assim, todo mundo me olha na rua. Você pensa mas não diz, faz parte dos segredos inconfessáveis de cada um. Ele ri como se percebesse, então você lembra que ele também tem segredos inconfessáveis.

quarta-feira, março 16, 2005

Viagem

Você sabia, vocês iam viver uma linda história de amor, você sentiu quando olhou nos olhos tristes dele, então você bebeu, encheu a cara de vinho branco, fazia calor e vocês tinham muito o que conversar. No dia seguinte você foi para o aeroporto cheia de esperanças. A cabeça, no entanto, ia de encontro a todas as expectativas, você teve que parar no meio do caminho, começou a passar mal na linha vermelha, entrou naquele avião de óculos escuros rezando pro estômago ficar bem quietinho e esquecer os exageros da véspera, mas ele não ajudou. Mal o avião deu ré, você estreou aqueles saquinhos ridículos feitos para marinheiros de primeira viagem, a fila da frente e a de trás vivendo o seu desespero, alguém acendeu a luz chamando a comissária, você se revirava por dentro tentando manter-se impassível, bebeu água com limão, segurou meio quilo de cristal oferecido pela companheira de bordo, tentando incorporar a vergonha, fingindo ter uma doença crônica, enquanto de alguma forma se preparava para um novo vôo. O avião decolou e você sentiu sua vida diante de outro rumo.

terça-feira, março 08, 2005

Liberdade para amar

Vocês passaram pela porta do paraíso, era lá o paraíso, onde vocês viviam na cama, onde vocês faziam amor na banheira, onde o nirvana ficava no hall que ligava o quarto à sala, onde vocês eram felizes no sofá, na mesa, entre o fogão e a geladeira. Vocês sentem saudades, naquela época não havia filho, família, supermercado, nada, vocês viviam para trepar, é verdade, depois tudo muda, muito embora vocês queiram ignorar a rotina, brigar com o cotidiano que vai diminuindo um pouco a chama, o paraíso continua ali como prova do crime. Ele faz questão de decorar o endereço para que a lembrança não pareça um devaneio, ele queria esse fogo eterno, você adoraria ser amante de novo, mas agora é impossível, viver é optar e vocês inventaram de casar, construir uma vida juntos. Está nos filmes, a paixão louca só existe a dois e nada mais envolvido, você está certa. Não se deve misturar as coisas: tesão é tesão, marido é marido, pai é pai.

sexta-feira, março 04, 2005

O sonho acabou

A frase estava escrita de um lado a outro do muro, o assassino está aqui, você ficou ainda mais nervosa, ali dentro você viveu parte da sua vida, naquela casa estavam os seus sonhos, ali você deu seus primeiros passos, passou réveillon, viu mulheres recém-separadas comemorando a independência com um cigarro na boca, assistiu à primeira novela colorida, teve sua filha de cócoras no meio da sala, ensinou seu filho a nadar na piscininha de plástico, soube que a sua afilhada havia feito um aborto, seu pai morreu nos seus braços. Agora você não pode mais entrar, por uma infelicidade a casa está no boletim de ocorrência da polícia, você não pode mais entrar, você tem que engolir várias histórias, tem que vender a casa a preço de banana, talvez dê para comprar uns CDs com o dinheiro, você não pode mais entrar, jogou todos esses anos no lixo, você não sabe em quem acreditar, confiar é perigoso, seu pai já dizia, não confie em ninguém, não dependa de ninguém, siga o seu caminho. É o que há para fazer agora.

terça-feira, março 01, 2005

Curta-metragem

Vocês dois estavam no bar, estavam apaixonados mas apenas conversando, como se fosse possível, as pernas entrelaçadas os olhares entrelaçados as almas entrelaçadas anunciavam, vocês estavam vivendo uma única vida, vocês tinham um carro igual, tinham dias iguais. Ela chegou, foi assustador mas vocês não conseguiam se mexer, eram dois filmes rodando em velocidades diferentes sobre a mesma tela, vocês dois em close num 16mm, ela num super-8 em preto e branco, o cabelo que não cabia no quadro, a boca que não cabia no rosto, a fala que não era captada pela câmera. Vocês não se levantaram, não se moveram, nada. Não dava para fazer nada, aquilo era um sonho.