A lua depois do gravador

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sexta-feira, dezembro 31, 2004

Hora de fazer ginástica

Ele ia correr, ele vestia o agasalho de ginástica, ele saía de casa para fazer ginástica, ele pegava a bicicleta e ia para a rua, ele amarrava a bicicleta no poste em qualquer poste em qualquer lugar no meio da rua e pegava um ônibus. Que delícia um homem pegar um ônibus às sete horas da manhã e ir acordar você com um saco cheio de pãezinhos quentinhos e crocantes. Ele chegava com o agasalho de ginástica verde, ele tinha muitas esperanças, ele adorava vestir roupas verdes. Ele deixava a bicicleta pra lá e ia correndo, o ônibus na esquina da rua. Ele parava na padaria e comprava os pãezinhos mais torradinhos. Ele ia tomar café, você preparava o café bem forte bem quente bem preto, vocês trepavam no corredor quando você abria a porta, o saco de pãezinhos quentinhos no chão ao lado da porta. A roupa de ginástica verde, a camisola de seda cor-de-rosa. Ele chegava tarde no trabalho suado cansado, ele ia correndo.

quinta-feira, dezembro 30, 2004

Triângulo amoroso

Era um triângulo amoroso inusitado. Ele saía cedo de casa e ia ver você, antes do trabalho. Às vezes voltava à noite. Durante o dia você ficava com ela. Era com ela que fazia natação, ia ao shopping, almoçava em família, brincava com as crianças. Ele não se importava, talvez porque tivesse dúvidas quando se referia a ela como uma namorada. Você nunca disse sim nem não. Dessa forma você o atormentava, você o deixava louco, você o amava.

Marco

Ele começou a falar, você não esperava que fosse tão bom. Ao som de ella fitzgerald, ele mostrou as filhas, previu o futuro, riu muito por estar à toa, galinhando mais uma vez, mais magro, mais moreno, mais bonito, o mesmo jeito de galã que encantava as mocinhas quando você era criança. Você também ficava encantada, sonhava ser princesa. Ele acendeu um cigarro e disse, é o último, ele está malhando, está rejuvenescendo, está apaixonado por tecnologia e cada vez mais poderoso. Depois de uns drinques faltou pouco para te propor algo indecoroso, se não estivesse trabalhando talvez fosse embora com ele, talvez desse ouvidos ao que ele queria dizer e você não deixou, você teve medo, ele tão elegante e sozinho, você cheia de dúvidas e problemas. Poderia ter sido um marco na sua vida.

terça-feira, dezembro 28, 2004

Pais e filhos

Muitos anos se passaram, e hoje você se vê novamente sem ele, mas não só; você está com sua filha, com seu pai, na casa que vocês sonharam, um fim de semana de pais e filhos como seria estipulado pelas varas de família, porém com sentimentos mais fortalecidos, crescidos, verdadeiros. Você se sente grande e bonita porque é como sempre imaginou e não tem mais medo, não se sente abandonada; pelo contrário: é a primeira, a mais forte, maravilhosa e única. Não tem mais medo de perder nada, não tem mais medo de viver nada, de repetir nada, de experimentar nada.

Autobiografia

Você tem saudades de quando era mais louca, de quando conhecia todos os lugares da moda, de quando teve um namorado que transou com outro homem, um cara que ele conheceu na rua, porque você pediu, tem saudades de quando tinha medo de ver filmes onde a mulher enlouquecia ou era muito frustrada, você tinha medo de pirar ou de ficar sem ninguém, você tem saudades de quando ia sozinha comer comida japonesa e tirava os sapatos com ar de verdadeira felicidade, tem saudades de quando andou de carro por uma avenida movimentada fazendo sexo oral, e de quando brincava de casinha com seus primos só por causa da sacanagem, tem saudades do laguinho cheio de peixinhos na entrada de um prédio vizinho ao que a sua avó morava, e de quando parou o carro numa estrada para fazer xixi no matagal completamente bêbada, saudades de quando entrou no motel com mais duas pessoas só para dormir, saudades de quando era ingênua, de quando tinha amores platônicos e de quando aos 15 anos achava ter 19 o máximo, saudades de quando era cinéfila e ia a sessões bem longe de casa, e que ficava chapada com uma música, ou com uma cena, ou um ator, tem saudades de quando trocou de roupa dentro do carro e se maquiou enquanto dirigia para não perder um evento, ou de quando tomou banho com a água da geladeira porque fecharam o registro do prédio e você ia sair com seu namorado, saudades de quando beijou um cara numa festa, a luz se acendeu e você viu que ele era horrível, e de quando os vizinhos colocaram um bilhete embaixo da porta pedindo para vocês treparem sem fazer barulho, ou de quando encontrou uma grávida que ia colocar na filha o nome da sua que uma vez ouviu você chamar num restaurante, saudades de quando dava aula para as empregadas da casa com quadro-negro, livros e cadernos, de quando seu cunhado lhe deu uma injeção para curar ressaca, saudades de quando fazia terapia, saudades que vão e voltam, e que fazem você rir de si mesma, chorar de felicidade, escrever a sua vida.

sexta-feira, dezembro 24, 2004

O assunto é sexo

Há muito tempo você não sentia estar fazendo nada proibido, o que é uma pena, quando você fazia coisas libidinosas provocativas perigosas você era mais verdadeira. Mas então você esperava por uma reunião na multinacional de energia e começou a ler pornografia, que delícia poder ler sacanagem no meio do salão, entre executivos diante da tela do computador sem que eles saibam. Eles devem pensar, ela está lendo um livro sobre economia, um tratado financeiro qualquer, o balanço anual de alguma empresa, mas não, você está lendo sobre sexo e se excitando de leve, tem medo de ser descoberta ou de molhar a cadeira, está com um vestido de gaze branco e uma calcinha de algodão finíssima. Começa a rir sozinha e fecha o volume, esconde-o na bolsa entre as fitas e o gravador, ninguém percebe. Talvez te achassem uma tarada. Talvez quisessem estar ao seu lado, em cima da mesa, perto do delírio.

quinta-feira, dezembro 23, 2004

Meia hora num copo d'água (O bruxo)

Você não deve tirar essa blusa. Vermelho é a cor certa pra você hoje. Se bem que nesse momento você deve vestir azul. Você está vivendo um transbordamento e deve aproveitá-lo. Qual é a sua profissão? O quê? Deixe eu fazer as contas. Seu nome completo? Esse é o seu ano. Não use ob. Você precisa transbordar de todas as formas. Nada pode te trancar, te impedir. Você quer ter filhos? Vai ter três. Compre um lápis-lazúli. Todo dia de manhã deixe a pedra por meia hora num copo d’água e depois beba. Deixe a pedra com você. Você está linda. Esse é o seu ano. Está aqui, nos números.

terça-feira, dezembro 21, 2004

Ele com ela

Eles se encontraram e resolveram recordar os velhos tempos. Ao invés de se torturar você se delicia com a história, gosta de saber que ele dormiu com ela novamente, fica excitada imaginando se ele fazia com ela igual faz com você, se ele gritou na hora do gozo a ponto de assustar os vizinhos, se ela tomou a iniciativa ou se foi ele. Em nome da paz você não fala nada, finge. Finge que não sabe, finge que não se importa, finge que nada mudou dentro de você. E assim a vida segue.

domingo, dezembro 19, 2004

Encontros mágicos

Ele te azarou no lobby do hotel, você foi ao banheiro achando engraçado, ele não imaginava mas logo depois vocês dois estariam juntos no restaurante. O que teria sido um encontro formal de negócios virou mais um encontro mágico na sua vida. Ele ficou conversando só com você e ignorando o protocolo, sugeriu um drinque que você logo aceitou, sugeriu que vocês dois conversassem a sós sobre o projeto. Você que é tímida diante de três e nada discreta a dois também aceitou, vocês conversaram sem parar, dançaram músicas cafonas entre as mesas do piano bar, e quando se deram conta o dia já estava quase raiando. Ele te carregou para ver o sol nascendo em outra cidade, vocês foram fumando na viagem, você não fazia isso há anos, adorou a idéia de não ter encaretado para sempre, você escolhia a trilha sonora e ele vibrava com cada música. Vocês se beijaram muito na praia, ele lambeu seus pés cheios de areia, vocês foram tomar café da manhã num hotel chiquérrimo, descalços e com roupas de véspera, vocês comeram muito e riram muito. Por um segundo se olharam e entenderam, vocês já eram um do outro.

sábado, dezembro 18, 2004

Elijah

Você está num barco de turista, você se destaca, sua pele tem outra cor, mas você carrega um bebê que é desta terra, ele é daqui, isto aqui está em seu sangue. Ninguém imagina mas você viveu aqui faz tempo, conheceu este lugar a fundo, amou muito e foi embora com seu filho no ventre. Agora você está de volta, finge que é turista nesta viagem onde não há o que fazer a não ser vomitar, seu filho agüenta firme, para ele é normal, esse mar faz parte de sua vida. Ele sorri para as outras pessoas, seu marido não se sente constrangido mas não compactua com a felicidade do menino. Você vê em cada corpo um pouco do homem que a fez mulher de verdade, mulher-mãe, mulher para a história.

Novo pretendente

Você disse, até amanhã, e ele foi embora, no dia seguinte contou que não conseguiu dormir pensando em você, você disse, por que não ficou, ele não entendeu, você ainda não sabe, você disse, quando a mulher diz não quer dizer sim, quando ela quer dizer não ela diz talvez. Ele ainda precisava aprender mas valia a pena, você percebeu isso quando o viu abrir o pacote de figurinhas do filho com delicadeza, você ficou olhando aquele gesto e se apaixonou. Você queria que com ele fosse diferente, que você não sofresse nem tivesse TPM, que conseguisse ser sempre uma mulher serena e inteligente, racional feito um homem maduro, sem agir por impulso como costuma fazer no trabalho. Você sabe que é impossível, tenta agarrá-lo esquecendo de tudo o que leu nas revistas femininas, que não pode na primeira noite (não foi), e nada de falar nos ex, tarefa difícil porque são tantos que quando conta suas histórias você mesma fica em dúvida quanto ao personagem, mas nesse caso é uma vantagem. Você tenta um ar blasé, de quem não se importa com mais nada em volta, as pessoas, o lugar. Então começa a gargalhar, é o seu jeito, é assim que dá certo.

sexta-feira, dezembro 17, 2004

As notícias voam

Vocês viviam de poesia, no dia dos namorados o sorriso vinha de um bombom, você dava tudo por um almoço escondido e melhor ainda era almoçar brisa nos braços dele. Você lia o jornal decorando as mãos dele, vocês se tocavam debaixo da folha, as notícias voavam, a pele dele era quente, úmida, fresca, mais importante do que o texto que você não lia, melhor do que a tela que você não visualizava. Ninguém se dava conta, e no meio da sala vocês namoravam com os olhos, se comiam por telepatia, se amavam em público, mas era leve, era bom, era transparente, por isso ninguém entendia.

quinta-feira, dezembro 16, 2004

Decifra-me ou devoro-te

Ele ficou olhando você tomar banho, lavar os cabelos, ensaboar-se e depois passar óleo sobre a pele, cena banal mas que ele consumia com prazer de adolescente, devorava-a como um menino travesso através da fechadura. Você saiu do boxe e começou a desembaraçar os cabelos com o roupão aberto, nua, a pele queimada, você sorriu e perguntou, você ficou me vendo, ele respondeu, é que você parece tão inatingível para mim. Os dois se olharam sem dizer nada, era verdade, você sabia, ele sabia, mas não tinham coragem, você não era mais dele.

quarta-feira, dezembro 15, 2004

A lua depois do gravador

Ele te deu a entrevista exclusiva, ele se lembrava de você, ele disse que você era o máximo, ele disse que lera seu livro de pé com a porta ainda aberta e a mala por desfazer voltando de viagem. Ele disse, foi uma surpresa, ele ficou apaixonado, ele pensou, não é possível. Você pensou, ele está inventando. Você viu que era verdade, vocês foram ver a lua na ilha, só vocês dois vendo a lua na ilha. Você pensou, isso é tudo o que eu queria, você não pediu nada, ele pediu, deixa eu pôr a mão aqui nos seus peitos, ele pôs a mão nos seus peitos, ele disse, eles são lindos você é linda você parece uma musa você parece uma música. Você disse, não tem mais ninguém aqui, ele disse, isso é tudo o que eu queria, você desligou o gravador, ele disse, vamos sentar ali e ver a lua, você pensou, não é possível, ele disse a verdade, ele ficou apaixonado, ele leu seu livro de pé, ele ficou sem pé nem cabeça, ele disse, não me esqueça. Você ficou surpresa, você disse, preciso ir, ele disse, vou me casar, você não pensou, eu te amo, você sempre pensa, eu te amo, você pensou, mas é gostoso ele é louco eu sou louca. Ele disse, aqui é o caminho do rio aqui é lindo, você disse, vou embora, ele disse, vai pela sombra não demora.